Nascido na Alemanha e naturalizado americano, o velejador Holger Kreuzhage tem 71 anos e navega há quase quatro décadas a bordo do mesmo barco, o veleiro Lord Jim. Fez da embarcação sua moradia e diz já ter dado quatro voltas ao mundo nela. É em terra firme, porém, que ele encara a maior tormenta de sua vida. Há dois anos, Holger e a mulher, Tracy, estão vivendo contra a vontade numa pequena casa em Mangaratiba, no litoral sul do Rio de Janeiro. Em 2007, o Lord Jim bateu numa pedra e naufragou na costa fluminense. O casal conseguiu tirar o veleiro do fundo do mar e contratou um estaleiro da região, o Renaman, para consertá-lo. Até agora, o reparo não ficou pronto. Numa história que envolve um processo judicial, agressão com uma pá e até índios pelados caminhando de madrugada no quintal do estaleiro, Holger e Tracy acusam o dono do Renaman de manter seu barco preso, apodrecendo no cais.
A saga dos americanos começou no dia 8 de março de 2007. Holger, que também é fotógrafo, e Tracy, mergulhadora e produtora do canal National Geographic, estavam com quatro alunos de seu curso de navegação a bordo, em Paraty. O grupo preparava-se para sair em direção ao Caribe quando o barco bateu numa pedra, ao desviar de um navio cargueiro. Vinte minutos depois, a escuna clássica, construída nos anos 1930 e batizada com o nome do personagem-título de um romance de Joseph Conrad, foi a pique. “Foi um desespero ver a água subindo e levando tudo o que a gente levou a vida inteira para conseguir”, diz Holger. O casal salvou algumas roupas, mapas de navegação, poucas fotos e a vira-lata Moana, companheira de longas viagens.
O resgate durou dois dias. Sem ter para onde ir, Holger e Tracy contaram com a solidariedade de navegadores brasileiros. Um emprestou um barco, outro organizou o resgate. Até o navegador brasileiro Amyr Klink colaborou, cedendo uma lancha para que os náufragos se instalassem.
Sem encontrar em Paraty um estaleiro que tivesse vagas com profundidade suficiente para abrigar o Lord Jim, o casal contratou o Renaman, na cidade vizinha de Mangaratiba. O conserto foi orçado em R$ 150 mil, com um prazo de 150 dias, além de uma diária de R$ 100 pela vaga ocupada no estaleiro. O dono do Renaman, Luiz Prado, ofereceu ao casal uma casa em seu quintal, onde eles poderiam ficar até que o Lord Jim estivesse pronto.
Passado o susto, tudo parecia caminhar bem, com o casal encantado com a gentileza e a solidariedade dos brasileiros. Mas aí termina a parte da história em que todos concordam. Cinco meses depois de começar o trabalho, o Renaman pediu mais R$ 110 mil pelo serviço. “Descobrimos que o barco estava todo podre. Aquela pedra foi sorte deles, eles iam morrer em alto-mar se saíssem daqui com o barco naquele estado”, diz Luiz Prado. Segundo ele, o contrato inicial, firmado em cinco páginas que detalhavam todo o trabalho, foi apenas uma estimativa. Os funcionários teriam percebido que a reforma seria bem mais trabalhosa e, por isso, Prado teve de cobrar mais. Os americanos assinaram um novo contrato, dessa vez concordando em pagar um total de R$ 260 mil. A partir daí, a obra não andou mais.
“Eles não nos deixavam trabalhar, eram grosseiros com os funcionários, diziam que os brasileiros são ladrões”, diz Prado. “Reclamavam de todos os detalhes, não concordavam com os materiais, queriam ter o controle de tudo. Era impossível fazer o trabalho.” O casal tem uma versão diferente. Eles dizem que a madeira usada na obra foi comprada de uma madeireira que também pertence a Prado. “A madeira estava verde, não dava para usar. Como vão consertar o barco com madeira verde? A obra andava muito lentamente e um dia simplesmente parou”, diz Tracy. O contrato previa que, depois de 150 dias, a diária de R$ 100 não seria mais paga. O prazo acabou, o casal suspendeu o pagamento das diárias. Prado suspendeu a manutenção da vaga no estaleiro e entrou na Justiça contra o casal.
“Trabalho há 22 anos aqui, tenho barcos de grandes empresas, de artistas, de empresários. Ninguém nunca entrou na Justiça contra mim”, diz Prado, mostrando uma embarcação com o logotipo da mineradora Vale e apontando lanchas de luxo ancoradas em seu estaleiro para reformas. “O problema é que eles se acham melhores do que nós só porque somos brasileiros”, afirma. “Eles ficam aqui na porta da empresa abordando os clientes e falando para eles tomarem cuidado porque nós somos ladrões.” O clima azedou de vez, e Holger e Tracy conseguiram autorização na Justiça para contratar outra empresa e finalmente terminar os reparos sem tirar o barco do Renaman. O casal continuava morando no quintal de Prado e hospedou na casinha alugada os operários da empresa contratada por eles, de Belém. Entre os funcionários, havia índios. “Uma noite meu filho chegou em casa e encontrou minha filha chorando. Ela disse que os índios estavam andando pelados pelo quintal”, diz Prado. “Ele perdeu a cabeça. Ninguém aguenta uma situação dessas”, diz o empresário. Os americanos prestaram queixa na delegacia, alegando que o filho de Prado feriu um pé de Holger com uma pá. Deixaram a casa alugada. “Não tinha ninguém pelado. Nós alugávamos a casa, tínhamos o direito de hospedar quem a gente quisesse lá”, diz Holger.
Prado não conseguiu a indenização que queria. A Justiça ordenou que o casal pagasse a ele R$ 8 (sim, oito reais), valor que os técnicos consideraram que os americanos ainda deviam do contrato. Além dos R$ 260 mil, HolgerHolger. Prado nega. “Não fiz isso. Eu apenas ordenei que não fosse feita a manutenção, porque eles não estavam pagando. Evidentemente, o trilho apodreceu”, afirma. “O maior interessado em que esse barco saia daqui sou eu, porque enquanto ele não sair fico com a vaga ocupada e não ganho nada.”
O empresário quer que seus antigos clientes paguem pelo menos R$ 70 mil para reconstruir os trilhos. Holger e Tracy dizem não ter como arcar com mais essa despesa. Os dois davam aulas de navegação e faziam trabalhos como freelances para publicações como a National Geographic Magazine usando o barco. Como não podem velejar, dizem ter perdido a fonte de renda. Um fundo de aposentadoria de Holger garante o sustento dos dois. Ambos procuraram o consulado americano, que informou que, como o caso estava na Justiça, não havia o que fazer. Apesar de estarem há dois anos no Brasil, falam muito pouco português. Ao sair do quintal de Prado, o casal alugou uma casinha a 100 metros do estaleiro. Dos fundos do imóvel, podem ver o Lord Jim ancorado – exatamente como a vida deles.
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